FERNANDA CANOFRE - BRUMADINHO,
MG (FOLHAPRESS) - Às 12h42 do dia 25 de janeiro, Natália de Oliveira,
47, encaminhou uma mensagem que acabara de receber no celular para a
irmã Lecilda de Oliveira, 49. "SOS BARRAGEM DA CALE ROMPEU", dizia o
texto com erro de digitação no nome da Vale.
Os risquinhos azuis que indicam recebimento não apareceram na tela. Na
terceira mensagem, quando já sabia que o lugar onde havia ocorrido o
rompimento era o Córrego do Feijão, em Brumadinho, Natália ficou
desesperada.
No mesmo dia, a família passou a receber telefonemas dizendo que
viram Lecilda na UPA da cidade, em um helicóptero, e que ela estaria em
um hospital de Belo Horizonte.
Até domingo, quando circulou a notícia falsa de que haveria sobreviventes em uma região da mata, a família teve esperanças.
Passados
30 dias, Natália está entre os familiares de 133 pessoas na lista de
desaparecidos da Defesa Civil de Minas Gerais. À espera do Instituto
Médico Legal, que comunica às famílias quando há identificação de um
corpo, ela passou a atender toda ligação que chega ao seu telefone.
"Todas
as famílias merecem fechar esse ciclo. Fico pensando no que uma
tragédia dessas faz com a gente. Antes, eu queria ela viva de qualquer
jeito. Agora, a gente só quer enterrar o pedaço que for", diz ela.
Lecilda trabalhava na Vale havia quase 30 anos.
O casal Dennis
Augusto da Silva e Juliana Creizimar de Resende Silva a convidou duas
vezes para madrinha: primeiro do casamento, depois dos gêmeos, agora com
11 meses. Dennis está entre os 177 mortos identificados, e Juliana
ainda não foi encontrada.
O dia 25 de janeiro de 2019 jogou a
cidade em um cenário de terror, segundo Natália. Lojas fecharam as
portas, pessoas tentaram fugir da cidade, ninguém sabia a proporção real
do que havia acontecido.
"Quando começaram os enterros, que
começamos a enterrar gente conhecida, aí a gente acreditou que tinha
acontecido. A hora que começamos a ter os velórios, as coisas foram
ficando reais", lembra.
O tempo à espera da confirmação da morte
também é uma forma de luto, segundo a psicóloga e coordenadora do
Laboratório do Luto da PUC-SP, Maria Helena Pereira Franco. Nele, as
pessoas oscilam entre dor e expectativa, enfrentar a realidade ou seguir
em frente.
"Os rituais são importantes porque eles marcam a
realidade. Eles organizam a pessoa e dão concretude. Não havendo um
corpo, o ritual conhecido, habitual, fica tudo em suspenso. Isso pode
criar uma condição que preocupa, que chamamos de luto ambíguo. Na
ambiguidade, fica difícil a pessoa retomar a vida", explica.
Não encontrar o corpo era o medo da família do auxiliar de serviços gerais Martinho Ribas, 60, até a última quinta-feira (21).
Depois
de um ano desempregado, Martinho começou a trabalhar na Vale em
setembro do ano passado. Quatro meses depois, a avalanche de lama
interrompeu tudo.
Seu velório em Brumadinho foi como tem sido
quase todos: uma cerimônia de até 20 minutos, com familiares e amigos,
seguida do enterro no local que a família indicar.
"Mesmo tendo
enterrado, a gente fica com dúvida. Porque a gente não viu, né? Não
deixaram abrir o caixão. A neta queria ver de qualquer jeito. Ainda
ficou meio pesaroso, porque a vontade da gente era ver o corpo", afirma
Laudi Maria Soares, viúva aos 54.
Especialista em tragédias como acidentes aéreos, o advogado Josmeyr
Oliveira explica que, em casos onde corpos das vítimas não são
encontrados, é importante que a família tenha algum simbolismo da morte.
O
Chapecoense, por exemplo, contratou uma empresa especializada em
"resgate de salvados" após a queda do avião com o time de futebol na
Colômbia, em 2016. "Salvados" são objetos tirados do local da tragédia
que tenham valor –financeiro, no caso de seguradoras, ou, neste caso,
afetivo.
"O universo de Minas Gerais é muito maior pelas
implicações, não só das vidas perdidas, mas pelas que foram impactadas.
Muita gente vai ter que enterrar os [objetos] salvados", afirma.
As
famílias relatam que a Vale ofereceu a ajuda de psicólogos para
acompanhá-los. A mineradora, porém, não contratou a busca de salvados.
Para
os bombeiros, o resgate de pertences não é prioridade no momento.
Porém, objetos encontrados estão sendo guardados para ajudar nas
identificações e poderão ser disponibilizados no futuro.
Shirley
Aparecida Côrrea dos Santos, 39, enviou várias mensagens ao marido Josué
Oliveira da Silva, 27, na manhã em que a barragem rompeu.
Trabalhando
em uma empresa terceirizada pela Vale, ele estava temporariamente em
Brumadinho e esqueceu o celular no dormitório. Os dois fariam um ano de
casados no dia 2 de fevereiro.
Depois de passar semanas à espera de notícias, na segunda (18) Shirley voltou a trabalhar.
"É uma forma de retomar, para não ficar só em casa, só no quarto. Seria bom que tudo parasse, mas não para", diz ela.
As
buscas não têm prazo para terminar e podem seguir por meses. Elas só
devem parar quando não houver mais possibilidade de distinguir lama e
corpos, de acordo com o tenente Pedro Aihara, porta-voz dos Bombeiros.
O
dia 25 de janeiro foi o primeiro de trabalho de Daiana Caroline Silva
Santos, 33, após cinco meses em licença-maternidade. Às 12h15, ela
enviou ao grupo de mensagens da família uma foto do seu almoço, dentro
do refeitório da Vale: salada e um pouco de feijoada.
Caçula de nove irmãos, Daiana listava dois sonhos: trabalhar na empresa e ser mãe.
O
primeiro veio em 2013; Heitor nasceu em 2018. Sobrevivente de três
acidentes de carro, ela tinha uma vontade imensa de viver, diz o irmão
Antônio Rosário da Silva, 47.
"Não ter achado [o corpo] deixa aquela angústia. A gente tem um
ciclo, que é fazer velório, enterro digno. Saber que ela ainda está na
lama mexe muito com a família."
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