segunda-feira, 8 de julho de 2024

‘Tigrinho’ e ‘Aviãozinho’: como jogos de azar podem gerar dependência, dívidas e perdas na família

 

A promessa de uma vida fácil e financeiramente estável surge ali, a um clique de botão no celular. Um tigre risonho e colorido na tela parece incentivar mais lances: tudo depende do apostador. O “Tigrinho”, o “Aviãozinho” e outros jogos de azar na internet vêm formando um número cada vez maior de vítimas presas num labirinto de dívidas, problemas familiares e perda do autocontrole.

⚠️ Atenção! O texto a seguir pode conter gatilhos emocionais. Pessoas com problemas de dependência ou vício em jogos podem recorrer a atendimento psicológico e psiquiátrico. Se, aliado a isso, você tem pensamentos suicidas, busque ajuda. O Centro de Valorização da Vida (CVV), por exemplo, oferece apoio através de chat na internet ou pelo telefone 188.

Popularizados no Brasil desde o isolamento social da pandemia, esses jogos ainda carecem de regulamentação. Agindo nas brechas da lei, as plataformas estimulam o investimento de pequenas somas para multiplicá-las por até centenas de vezes. O problema é que isso não acontece e gera uma comunidade cada vez maior de perdedores.

Uma delas foi a cearense Ângela Maria, de Missão Velha, na região do Cariri. Atolada em dívidas estimadas em mais de R$300 mil, ela tirou a própria vida. Para conscientizar outros jogadores sobre o alto risco dessas apostas, a irmã dela, Jessica Lobo, decidiu abrir o perfil “A outra face do Tigrinho”. Três grupos online conduzidos pela “ativista contra os jogos”, como se define, reúnem quase mil pessoas de todo o Brasil. 

Entre os membros, estão “a irmã de um rapaz que também perdeu a vida” e “um policial da Bahia que perdeu mais de R$1 milhão e hoje paga até processo”. Hoje, para Jessica, o trabalho voluntário é uma forma de honrar a memória da irmã - que deixou áudios relatando o problema - e de combater “o julgamento de quem não passa por isso”.

“Vejo que ainda tem muita gente que, vez ou outra, acaba recaindo e volta completamente destruído. Isso me doi bastante”, lamenta Jessica. “Infelizmente, esse é um vício como qualquer outro, porém mais prejudicial, pois não dá sinais, não dá alerta e está nas mãos a todo momento”. 

Relatos assim não são incomuns nos dois grupos dos Jogadores Anônimos (JA) em Fortaleza. Por lá, há quem tenha perdido mais de R$200 mil em apostas online e, agora, ajuda outros jogadores viciados em cassinos virtuais e Jogo do Foguete, entre outros. Em paralelo, a reportagem também ouviu relatos de um marido que precisou mudar a senha do aplicativo de banco para que a esposa deixasse de gastar dinheiro nas apostas.

Legenda: Ângela (de azul) deixou pistas para Jessica (de preto) começar a ajudar outras pessoas em sofrimento
Foto: Arquivo pessoal

Entretenimento versus dependência

Segundo a psicóloga Beatriz Austregésilo, pós-graduada em Dependência Química e atuante em uma clínica de tratamento de transtornos psíquicos e vícios em Fortaleza, é possível classificar os jogadores em três tipos:


De forma geral, a especialista lembra que jogos mexem com o sistema límbico, estrutura cerebral relacionada às recompensas. Ganhos e vitórias lançam neurotransmissores ligados à sensação de prazer nas vias dopaminérgicas da mesma forma que uma dependência química: você tem um pico, é recompensado e quer de novo porque a sensação é muito boa - porém, passageira.

“Ou seja, quanto mais rápido o efeito, mais chances eu tenho de dependência. E quando falamos em jogos eletrônicos, não são partidas de 40 minutos para saber se vou ganhar ou perder. Na palma da minha mão, em 5 minutos, eu consigo jogar. É muito prático para dar certo ou para dar errado”, exemplifica.

Vinícius Andrade, médico colaborador do Ambulatório de Transtornos de Impulso da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Comissão das Adicções da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), explica que os jogos eletrônicos são uma forma popular de entretenimento, mas podem trazer sérias consequências para a saúde mental e emocional.

A compulsão, alerta, envolve buscar várias vezes o mesmo comportamento, apesar da consciência de prejuízos relacionados a ele. Já a dependência é mais profunda e gera falta de controle, incluindo “sintomas de fissura” que podem levar a taquicardia, sudorese e aumento da velocidade do trânsito gastrointestinal - similares a quadros de dependência de opioides. 

“Na adicção, as outras coisas acabam sendo deixadas de lado em função desse comportamento. Mesmo quando não tem acesso, ou porque a esposa brigou ou porque os pais cortaram o cartão de crédito, ele continua com vontade e fazendo de tudo que está ao alcance para conseguir ter novamente acesso a esse jogo”, aponta Andrade. 

Segundo o psiquiatra, é importante reconhecer os perigos desse vício e como ele pode impactar a vida diária em diversos âmbitos:

  • Saúde mental: o vício tem sido associado à depressão, ansiedade, abuso de álcool e tabaco, baixa autoestima e comportamentos impulsivos;
  • Problemas físicos: pode trazer dores musculares, lesões por esforço repetitivo e problemas de sono;
  • Relações interpessoais: o tempo gasto em jogos pode levar a conflitos familiares, problemas conjugais e dificuldades de comunicação;
  • Desempenho profissional: pode resultar em falta de concentração e baixo rendimento;
  • Desenvolvimento cognitivo: especialmente em crianças e adolescentes, pode dificultar o desenvolvimento de habilidades sociais, emocionais e acadêmicas.
  • População vulnerável

    Com a atenção captada, a psicóloga Beatriz Austregésilo lembra que os jogos costumam começar pela Fase da Vitória, com ganhos sucessivos e animadores. A Fase das Perdas vem em seguida, quando é ativado um otimismo não realista: a pessoa percebe que há algo errado, mas decide que conseguirá contornar a situação se jogar mais. O agravamento leva à Fase do Desespero, quando os recursos financeiros acabam e o jogador enfrenta sensação de fracasso, culpa e vergonha. 

     

    Do DN

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