Ela sobreviveu à guerra na Síria, à perda do marido e à distância dos
sete filhos e 13 netos que o conflito espalhou pelo mundo. Sua
resistência, porém, foi derrotada pelo coronavírus, e Khadouj Makhzoum
morreu na manhã desta quarta-feira (13), aos 55 anos, em um hospital de
São Paulo.
Nascida na cidade de Aleppo em uma das famílias mais antigas do mundo
árabe, Khadouj recebeu esse nome em homenagem a Khadijah, primeira
esposa do profeta Maomé. Sua mãe e sua avó também se chamavam assim. Ela
se casou aos 15 anos com um marido escolhido por seus pais, um
estudante de direito que depois mudou de curso e se formou professor de
inglês.
Khadouj chegou ao Brasil em dezembro de 2018, após quatro anos de
tentativas de um de seus filhos para trazê-la ao país. Abdulbaset
Jarour, 30 (conhecido aqui como Abdul), é refugiado em São Paulo desde
2014 e não descansou enquanto não conseguiu tirar a mãe e a irmã caçula,
Sedra, de sua cidade natal - que havia se transformado em um dos
principais campos de batalha entre governo e oposição no conflito sírio.
A Folha de S.Paulo acompanhou o reencontro emocionado da família no
aeroporto de Guarulhos.
Durante o cerco a Aleppo, Khadouj e Sedra
passaram frio, fome e dormiram de favor na casa de parentes ou no chão
de acampamentos improvisados. No Brasil, a adaptação delas não foi
fácil. Sem falar o idioma, em uma cultura muito diferente e lidando com
traumas do passado, entraram em depressão.
Sedra acabou
indo para o Líbano em fevereiro deste ano para morar com outra irmã. A
mãe tinha planos de se unir a ela, mas Abdul tentava regularizar os
documentos quando a pandemia de coronavírus suspendeu os serviços do
consulado. Outro filho se reuniu com eles e hoje vive com Abdul em São
Paulo.
Assim como muitas mulheres sírias, Khadouj aprendeu com a
mãe - e depois ensinou as filhas - a cozinhar. Era uma das coisas que
mais gostava de fazer e cobrava de Abdul que conseguisse ingredientes
típicos difíceis de encontrar no Brasil para poder reproduzir os pratos
favoritos de sua terra. "Minha mãe era chef de cozinha. Todo dia fazia
algo com um sabor diferente e era muito, muito bom. Aleppo tem 60 tipos
de quibe, e ela conhecia todos. Também fazia um charuto delicioso,
berinjela e abobrinha recheadas, doces", enumera ele.
Descrita por
Abdul como uma mulher "alegre, comunicativa, com sangue quente e alma
jovem", Khadouj fotografava e documentava tudo o que via em São Paulo
para enviar às amigas e a familiares em outros países. "Ela era muito
querida e gostava de gente. Sempre falava um ditado árabe que é 'o
paraíso sem pessoas não é paraíso'", diz. "Minha mãe foi muito
guerreira, sofreu demais na vida. Nunca teve paz total. Quando chegava
um momento mais calmo, logo vinham os problemas."
No mês passado,
esse problema foi a Covid-19. Khadouj ficou 21 dias internada na UTI do
Hospital das Clínicas. Por ser diabética e hipertensa, fazia parte do
grupo de risco da doença, e seu estado se agravou.
Nas redes
sociais, Abdul compartilhava as notícias que recebia dos médicos e pedia
orações para Khadouj. No último domingo, Dia das Mães, ele andou pela
avenida Paulista com um cartaz em que incentivava as pessoas a
respeitarem o isolamento e a ficarem em casa durante a pandemia. Três
dias depois, recebeu o telefonema que mais temia.
Khadouj foi enterrada no Cemitério Islâmico do Brasil, em Itapecerica da Serra, na própria quarta-feira (13).
FOLHAPRESS
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