Victor Uchôa/BBC Brasil News
"A contaminação química dura muito mais tempo do que aquilo que a poluição visual pode sugerir."
Essa
não é uma afirmação boa de ouvir, quando se trata da mancha de óleo que
atinge boa parte do litoral brasileiro desde 30 de agosto, mas é a
realidade expressada pela oceanógrafa Mariana Thevenin, uma das
articuladoras do grupo de voluntários Guardiões do Litoral, que se
formou em Salvador para limpar praias, estuários e manguezais desde que a
contaminação chegou à costa da Bahia.
Em um cenário ideal, aponta
Thevenin, o derivado de petróleo deveria ter sido barrado antes de
chegar à areia e entrar pelos rios. Entretanto, se o óleo já chegou à
costa, a limpeza deve ser feita na maior velocidade possível, na
tentativa de evitar que ele volte para o mar com o movimento das marés
ou que as substâncias tóxicas ali contidas se entranhem nos variados
sedimentos costeiros.
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Ainda assim, não se pode criar ilusões. Mesmo quando, para os olhos, parece limpo, o risco pode seguir oculto por muitos anos.
"Essas
substâncias contaminam todos os organismos do ambiente e isso
facilmente cai na cadeia alimentar. Um pequeno peixe, por exemplo, pode
comer algo que esteja contaminado. Isso entra na cadeia até chegar no
peixe que consumimos", alerta Thevenin, criadora do perfil Oceano para
Leigos, no Instagram.
Nos noves Estados do Nordeste, já são 200 localidades atingidas pelo
óleo, de acordo com a atualização feita no sábado (19/10) pelo Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Oceanógrafos,
químicos e autoridades estaduais ouvidos pela BBC News Brasil avaliaram
o impacto da movimentação da mancha pela costa do Nordeste, após a
chegada à Baía de Todos os Santos, em Salvador.
Até chegar ali, o
óleo já havia deixado um rastro tóxico por milhares de quilômetros e
atingido os mangues e corais dessa região em uma etapa mais avançada de
degradação — um tipo de contaminação que é mais difícil de ser limpa e
que permanecerá durante anos no meio ambiente, segundo os especialistas.
Degradação lenta
O
petróleo cru, ainda que seja altamente tóxico, é uma substância
orgânica. Dessa forma, ele pode ser degradado através de fatores
naturais, como a rebentação das ondas (que dispersam o material), a
irradiação solar (que evapora determinados componentes) e até mesmo
bactérias que se alimentam do carbono contido no material. O problema,
nesse caso, é o tempo.
"A degradação natural é extremamente
lenta. A depender do ambiente, leva décadas. Em áreas onde já ocorreram
derrames, temos análises feitas anos depois do episódio e ainda assim é
detectada a toxicidade. Por isso seria importante evitar que esse óleo
chegasse na costa", diz Carine Santana Silva, que é oceanógrafa,
pesquisadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e especialista em
petróleo e meio ambiente.
Além do risco na cadeia alimentar, as pessoas também estão sujeitas a
entrar em contato direto com os contaminantes que permanecerem no
ambiente.
Isso pode acontecer em uma simples caminhada pela areia
da praia ou no banho de mar, tocando involuntariamente em resíduos de
óleo ou inalando os gases liberados por eles.
"O monitoramento
das regiões atingidas precisa ser feito por anos, com análises
constantes, para garantir que as pessoas não estão frequentando zonas
intoxicadas", adverte Carine Silva.
A Bahia Pesca, órgão
governamental responsável pelo fomento da atividade no Estado, produziu
um relatório preliminar após monitoramento em áreas pesqueiras já
atingidas pelo óleo.
"Neste ambiente vivem animais que estarão em
contato direto com o poluente e têm grande importância econômica, como
caranguejos, aratus, sururu, lambretas. A mariscagem será afetada
diretamente nesses locais, visto que, com a presença de óleo, a
recomendação é a paralisação da pesca. O comércio de organismos
aquáticos dessas áreas ficará comprometido. A pesca como um todo deverá
ser impactada, tendo em vista que os consumidores foram alertados para
não adquirirem produtos pesqueiros", indica o documento.
De acordo
com a estatal, o monitoramento seguirá sendo feito durante e após a
crise, inclusive com análise química de potenciais contaminantes em
peixes e mariscos a serem coletados.
Sem medição
No
petróleo, estão contidos compostos orgânicos voláteis (COVs) e
hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs), ambos altamente tóxicos e
cancerígenos.
Os COVs evaporam com relativa rapidez, mas os
hidrocarbonetos se mantêm íntegros por muito tempo. Para o mais famoso
deles, o benzeno, a resolução 357 do Conselho Nacional do Meio Ambiente
(Conama) determina um limite que vai de 0,051 mg a 0,7 mg por litro de
água salgada. Passando disso, já impacta a biota marinha e a saúde
humana — ainda não existe resultado de medição na Bahia após a chegada
do óleo.
"Os governos não querem fazer alarde porque um caso
como esse afeta o turismo, mas existe a questão da saúde, tanto de quem
frequenta praias como de quem trabalha nessas zonas, mariscando,
pescando, vendendo", observa a química Sarah Rocha, que atua no
laboratório da pós-graduação em Petróleo, Energia e Meio Ambiente da
UFBA.
"Essas pessoas vão ficar em contato com esses resíduos por muito
tempo, porque há também uma sustentação financeira em jogo. É muito
difícil, por exemplo, que esses mariscos deixem de ser recolhidos para
venda e é certo que muita gente vai ingerir alimentos contaminados",
acrescenta ela.
Sarah Rocha integra a equipe que vem fazendo
análises de amostras do óleo que tem chegado à Bahia, verificando sua
origem e seu estado físico-químico. Segundo ela, o material que toca as
praias já chega bem degradado, tendo passado por seguidas intempéries, e
resta somente a fase da degradação bacteriana — justamente a mais
demorada.
"Notamos que essas amostras têm pouca solubilidade em
água. Então, o que não for retirado, ainda vai parar no fundo do mar,
sem ninguém ver, contaminando mais esse ambiente."
Manguezais e corais ameaçados
As
Cartas de Sensibilidade Ambiental ao Óleo (Cartas SAO), publicação do
Ministério do Meio Ambiente, indicam os níveis de sensibilidade de cada
ecossistema costeiro e marinho no Brasil, servindo como um guia para
ações que visem a mitigar os impactos de desastres como o do momento.
No
documento está indicado, por exemplo, que os manguezais e recifes de
coral têm sensibilidade nível 10, o mais alto na escala das Cartas SAO.
Desse modo, deveriam ser as zonas prioritárias nas ações de contenção do
óleo.
A Bahia foi o último Estado do Nordeste a ser atingido pelo
derramamento, mais de um mês após o primeiro registro oficial, na
Paraíba. Ainda assim, nenhuma barreira de contenção foi montada como
medida preventiva.
Pelo menos duas áreas de extensos manguezais
baianos já foram atingidas, nas barras dos rios Itapicuru e Pojuca,
ambas no litoral norte. Além disso, o óleo já penetrou na Baía de Todos
os Santos — maior do país e segunda maior do mundo —, margeada por
dezenas de manguezais, bancos de coral e estuários.
"Em áreas
lamosas como os mangues, que têm pouca movimentação de água e sedimentos
mais finos, é mais difícil fazer a limpeza. Esse óleo entra nos buracos
e se mistura com o sedimento. São décadas para o ambiente degradar (o
óleo)", afirma Mariana Thevenin.
Carine Silva compartilha a preocupação. "Onde bate a onda, a abrasão
dispersa o material. A areia também não tem tendência geoquímica de
reter os resíduos. Mas no mangue a permanência é bem maior, porque é uma
área porosa, que prende o contaminante."
"Nos próximos anos, vai
ser bem complicado o consumo nestas regiões, porque esses ecossistemas
são zonas de reprodução de muitas espécies e abrigam outras tantas que
vivem enterradas no sedimento, como ostras, sururu e chumbinho.
Justamente onde a contaminação vai impregnar", emenda a oceanógrafa.
Demora no combate
Para
Carine, através das Cartas SAO, poderiam ser identificadas até mesmo
"áreas de sacrifício", para onde o óleo seria direcionado se houvesse o
entendimento que era impossível detê-lo. Mas, sem acionamento de um plano de contingência, o que se vê é um espalhamento da matéria por variadas zonas, sejam elas mais ou menos sensíveis.
Na
sexta-feira (18/10), o Ministério Público Federal (MPF), com aval dos
procuradores dos noves Estados nordestinos, entrou com uma ação contra a
União alegando omissão no caso das manchas de óleo.
O pedido era
de que, em 24 horas, fosse colocado em prática o Plano Nacional de
Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Água (PNC), criado
em 2013. A multa diária prevista é de R$ 1 milhão em caso de
descumprimento.
"Afinal, tudo que se apurou é que a União não
está adotando as medidas adequadas em relação a esse desastre ambiental
que já chegou a 2.100 quilômetros dos nove Estados da região", diz a
ação.
Ainda na sexta, o Ministério do Meio Ambiente divulgou nota
afirmando que "as ações do Plano Nacional de Contingência (PNC) e do
Grupo de Acompanhamento e Avaliação (GAA) estão em pleno funcionamento".
"Não há nenhuma demora de nenhum órgão. Todos estão trabalhando de
maneira ininterrupta, desde o aparecimento da mancha no dia 2 de
setembro. Não se poupou nenhum esforço", afirmou o ministro Ricardo
Salles no comunicado da pasta.
À BBC News Brasil, o
superintendente do Ibama na Bahia, Rodrigo Alves, disse que o
monitoramento das praias é feito diariamente, o que indica onde devem
ser concentrados os esforços de limpeza.
Argumentando que o óleo
cru tem se movido sob a superfície do mar, o que só permite sua
visualização quando toca a costa, Alves diz que "é difícil prever onde
montar as bóias de contenção".
Em seguida, enfatizou que toda a
operação de monitoramento e limpeza deveria estar sendo custeado pelo
agente poluidor, ainda não identificado.
Limpeza
Diante
de toneladas de um material tão tóxico, pode parecer contraditório,
mas, se o óleo não foi barrado no mar e já chegou nas praias, rios e
mangues, a indicação é que a limpeza seja feita mesmo manualmente — com
todos os equipamentos de proteção necessários (botas e luvas de PVC,
calça, camisa de manga comprida e máscara para poeira ou gás, a depender
do volume de óleo).
Como estes são ecossistemas delicados, o uso
de maquinário pesado pode fazer com que os contaminantes fiquem
compactados e ainda mais incrustados nos sedimentos.
Na artigo
"How to clean a beach", publicado pela revista Nature, o biólogo John
Whitfield consegue até manter algum bom humor: "pessoas com pás e
peneiras são as únicas ferramentas sensíveis o suficiente para remover o
óleo enquanto protegem o solo e os organismos ao redor".
Ou seja, para tentar mitigar uma contaminação invisível no futuro, é preciso meter a mão nos contaminantes no presente.
Mais
ainda: toda a população terá que se manter alerta por um longo período e
cobrar dos órgãos governamentais monitoramento periódico das praias,
peixes e mariscos. Pois, como resume Carine Silva, "o senso comum é
achar que porque não estamos vendo, não existe. Mas, neste caso, o
perigo está justamente no que não vemos".
*Com informações da BBC Brasil News
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