segunda-feira, 15 de março de 2010

Medicina do interior, a mina de ouro

Primeiro foram os pediatras, ginecologistas e clínicos gerais. Agora, é a vez de superespecialistas (médicos com mais de uma especialidade) como gastroenterologistas, oftalmologistas, médicos do trabalho e outras especialidades mais sofisticadas buscar o interior para ganhar dinheiro. A carência dos Hospitais Regionais do Estado e a politicagem que envolve os Programas de Saúde da Família (PSF), abrem um espaço propício à rede privada.

Em Caicó, por exemplo, Oberdan Damásio é praticamente o único médico  gastroenterologista a atender na rede particular. “Só vou a Natal uma vez na semana para trabalhar no meu consultório particular, e geralmente volto para o interior no mesmo dia. Em Caicó atendo os demais municípios da região tanto no plano de saúde quanto particular”, comenta ele, que nasceu e retornou ao Seridó depois de concluir os estudos.

Mas nem sempre é assim. Quem realiza a façanha de sair e voltar toda a semana para a capital, admite que há um desgaste que nem sempre compensa o lucro. O médico do trabalho Janúncio Rocha não ia tão longe, mas sentiu o peso de rodar 100 quilômetros todo dia para dar conta dos empregos, e decidiu abrir mão. “Trabalhava em um Programa de Saúde da Família (PSF) em Parnamirim, deixei e fico só na capital, onde posso me dedicar mais ao consultório e ao Estado, onde atendo desde 1988”.

A rotina era a seguinte: além das 40 horas de plantão no Hospital Giselda Trigueiro como médico infectologista, ele revezava o dia entre o PSF de Parnamirim, em tempo integral, e, nos intervalos, o atendimento particular e de convênio com um plano de saúde em Natal. “Das 7 às 11h ia para o PSF. No intervalo até às 13 atendia no consultório em Natal. Depois voltava para o PSF onde ficava até às 17h, e no final voltava para o consultório, ficava lá até a noite”.

Ele garante que o pagamento nunca atrasou, mas o cansaço não compensou. “Ia de moto de um lado para o outro. Agora está mais tranquilo. Faturo o mesmo no consultório, e mesmo que fosse menos, valia a pena permanecer na capital”.    presidente do Sindicato dos Médicos do Estado, lembra que  os superespecialistas

Geraldo Ferreira, presidente do Sindicato dos Médicos do Estado, lembra que são as especialidades que exigem procedimento que fazem valer a pena viajar ao interior. “Eles geralmente acoplam algum tipo de exame ao atendimento, porque só a consulta é relativamente barata”.  O gastroenterologista agrega o exame de endoscopia, o cardiologista realiza um exame ecocardiograma, o oftalmologista leva o exame de vista da retina, o neurologista, o encafalograma e assim por diante.

“A ortopedia também tem uma carência absurda em todo o estado. E temos  casos de neurocirurgiões que vão a Pau dos Ferros uma vez por semana para atender a uma demanda reprimida. Assim também se faz a captação de pacientes, com contratos diferenciados, exames e diagnóstico no interior, em convênio com o SUS, e só depois precisam vir a Natal”.

Oberdan Damásio relaciona a resistência dos médicos em se mudar para o interior principalmente pelo fator social. “O interior tem boas escolas, oferece melhor qualidade de vida e para se manter atualizado, basta frequentar os congressos e fazer cursos”, defende. O médico do trabalho Elano Medeiros concorda que o interior oferece boas oportunidades.

“Minha esposa e filhos vivem na capital, eles estudam aqui. Mas se engana quem pensa que o interior é ultrapassado, há aparelhos de ponta para os exames. O mercado é  melhor que em Natal, seja particular ou convênio”.

Só 300 médicos na rede pública

Para completar  o quadro de “desassistência”, a rede estadual concentra cerca de 87% do quadro de especialistas na Região Metropolitana. Dos 26 hospitais estaduais, seis estão em Natal e Parnamirim: Walfredo Gurgel, Santa Catarina, Maria Alice Fernandes, Giselda Trigueiro, João Machado e Deoclécio Marques. Sozinhos, eles têm 1.200 dos 1.600 especialistas servidores do Estado.

Se contar o eixo da Grande Natal, a concentração sobe para 1.400 profissionais. Ou seja, sobra menos de 300 médicos da rede pública para dar conta da demanda dos  167 municípios do RN. “O plano de carreira do Estado beneficia o médico do interior com uma gratificação de deslocamento/ interiorização”, diz o presidente do Sinmed/RN, Geraldo Ferreira. “Ela é importante para tentar fixar o profissional nos interiores, na rede estadual. Mas a maioria dos hospitais são desequipados. O paciente chega e o médico, fora o conhecimento clínico, tem poucos recursos ”, diz.

A complementação da renda dos médicos do Estado está nos planos de saúde e consultas particulares, que também se concentram na Região Metropolitana. As estatísticas do Sinmed mostram que cerca de 10% da população do Rio Grande do Norte possui plano de saúde e, destes, 80 % se concentram em Natal. Considerando apenas a capital, esse índice cresce: de 30 a 35% dos natalenses são usuários de planos de Saúde.

Mas a ausência de médicos  no interior não é apenas uma questão salarial.  “Além da frustração pela falta de condições de trabalho no interior e possibilidade de mercado mais amplo na capital, Natal  oferece uma melhor estrutura de vida”, diz. O presidente do Sinmed/RN chama atenção aindapara outro aspecto: a formação do profissional.

“Na capital estão disponíveis melhores recursos, tecnologia, hospitais mais bem equipados para realização de exames e uma boa faculdade”, elenca. “O médico procura um centro onde possa exercitar o que aprendeu”. É comum que os profissionais saiam do âmbito potiguar para se especializar em outro estado.  Com a boa formação na graduação, conseguem fazer residência médica em locais de destaque, como Ribeirão Preto, Brasília ou São Paulo.  “Quando voltam querem exercitar. “E, novamente, é na capital onde estão os hospitais privados e públicos mais bem equipados.  O médico é um cidadão normal, tem família para criar, filho pra botar em colégio, uma série de exigências, um padrão de lazer. “

Prefeituras exercem pressão política no PSF

Com o passar dos anos, o Programa de Saúde da Família (PSF), do Governo Federal,  passou a exigir médicos cada vez mais especializados, tendo sido inclusive criada a residência médica  Medicina de saúde e comunidade . “De certa forma, exige uma excelente formação, conhecimento bem amplo em outras áreas como dermatologia, sexologia, urologia”, diz Geraldo Ferreira.

Mas um fator permaneceu até hoje: a pressão política envolvida na contratação, feita pelas prefeituras municipais, geralmente por indicação. “Estamos invertendo o fluxo: em vez de um pediatra que se aposentou, um clínico geral ou um recém-formado que terminou a faculdade ontem, a exigência do mercado é um profissional bem formado também”, diz Geraldo Ferreira, presidente do Sinmed/RN.

Mas mesmo com os valores relativamente altos oferecidos pelos PSF no RN – entre R$5 mil e R$6 mil em média – faltam médicos para dar assistência à população do interior. “O acesso a essas vagas, via de regra, não é por concurso, são empregos temporários submetidos a toda pressão política. O pagamento muitas vezes atrasa”, diz o presidente do Sindicato dos Médicos do RN, Geraldo Ferreira.

A jornada, na maioria das vezes, permite que o especialista não precise se mudar para a cidade onde atua, mas mesmo assim há prefeituras que têm dificuldade para contratar o profissional. É o caso da prefeitura de Janduís, que não  encontra um especialista que trabalhe para receber R$13 mil por mês, valor substancialmente maior do que o oferecido em fim de carreira no Estado, que gira em torno de R$6 mil a R$7 mil.

“O problema é que o acesso não é por concurso e normalmente são empregos temporários que ficam submetidos à situação política”, diz. “É comum o sindicato receber reclamações sobre os prefeitos. Basta a comunidade começar a gostar do médico que começa a ciumeira. Chegam ao extremo de não querer que o médico tenha um relacionamento com a oposição. Se o rival do prefeito frequentar a casa do médico já se cria um clima de animosidade”.

Quando tem um concurso público para médico municipal, segundo Geraldo, a maior parte do salário é composta por gratificação. “O valor é de, no máximo, talvez mil reais. Ou seja, não há segurança nenhuma”. Outro problema com que o Sinmed costuma lidar são os atrasos dos pagamentos. “O profissional recebe no primeiro mês, depois aparece um problema e começa a atrasar. Aí o medico precisa ir implorar o salário na casa do prefeito, um desgaste terrível”.

O fato não é tão incomum. “Quando esses médicos deixam o interior, há um débito normalmente de quatro a seis meses”. Na opinião de Geraldo, há muita “fantasia em torno dos salários, atrativos à primeira vista. “Os salários do PSF no RN são menores que na Paraíba e Ceará. Na fronteira da região oeste com o Ceará, tem PSF em torno de R$10 mil, com menor vinculação  política”.

Ele é taxativo sobre o assunto: a saúde é muito vinculada à politica. “Grande parte da classe política monta seu trabalho em cima da assistência à saúde ou da precaridade do oferecimento público que é compensado através do favorecimento político. “Isso atrapalha o serviço do médico. Não conheço nenhum satisfeito com essa situação”.

fonte:Ellen Rodrigues - Repórter

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