sexta-feira, 12 de abril de 2013

Oito filhos, 50 galinhas e um barraco

Por: Conrado Carlos
Aos 33 anos, Valquíria é dona de um barraco com dois quartos, sala e cozinha, onde vive com os filhos. Hoje pela manhã, uma equipe da LBV a presenteou com o enxoval da oitava criança que está para nascer. Foto: José Aldenir
Aos 33 anos, Valquíria é dona de um barraco com dois quartos, sala e cozinha, onde vive com os filhos.Foto: José Aldenir
Há cinco anos, Valquíria Paulina dos Santos vivia um inferno astral. Viciada em drogas e sem endereço fixo, ela perambulava nas imediações do supermercado Makro com seis filhos em busca do prato de comida diário. Com a mãe em São Tomé, município distante 120 quilômetros de Natal, e o pai falecido, a solidão das ruas era sua única companhia. A mulher tinha então 28 anos e via o futuro como uma abstração. O convite de uma amiga para ocupar um terreno no bairro do Planalto veio de forma providencial, quase um aviso do anjo da guarda. Com tantos filhos, urgia a necessidade por um teto. Cinco verões depois, mais uma cria veio ao mundo (uma menina cega, surda e muda), enquanto o oitavo filho está na iminência de nascer. Hoje, dona de um barraco com sala, dois quartos e cozinha no assentamento Monte Celeste, ela acredita que a vida melhorou. “Nem se compara com o que vivi naquele tempo”.
Com a idade de Cristo, Valquíria tem sete filhos, cujas idades oscilam entre dois e 16 anos (o que denota a falta de educação sexual da ainda jovem, que sabe ler e escrever). Gerados em relacionamentos que manteve com quatro homens, os descendentes dividem com a mãe os R$ 900 que acumulam após somar o Bolsa Família e a aposentadoria pela filha doente. Em meio a gatos, cachorros, galinhas, porcos e cavalos, a família enfrenta o limite do que pode ser classificado como situação de risco social. Sem a ajuda dos antigos parceiros, tem a árdua missão de dar comida e amor para os frutos do próprio ventre. “Já pensei em me matar, sim, não vou negar.
Antes de chegar aqui, vivia num desespero muito grande. Agora, não. Depois que cheguei aqui [no Monte Celeste] minha vida melhorou muito. Aqui todos se ajudam”.
São 182 famílias que vivem em condições abjetas numa área vizinha a empreendimentos que transformaram o Planalto em uma das pérolas da construção civil na capital potiguar. E Valquíria chefia uma delas. Certo dia, o fogo consumia parte do telhado, enquanto todos dormiam. Corriam boatos de que traficantes do loteamento Leningrado queimavam casas no Monte Celeste, onde nutriam inimizade com outros ‘varejistas de entorpecentes’. “Foi uma tristeza só. Mas ainda bem que ninguém se feriu. Depois disso, eu posso dizer, minha vida é uma maravilha aqui. Tenho meus animais e sossego”. Segundo Valquíria, são mais de 50 galinhas. “De vez em quando, somem umas duas, três, mas eu não ligo. É bom que nasce mais”.
Das 5h às 22h, a rotina de Valquíria é dedicada aos filhos. Mesmo gestante (já no nono mês), a batalha de cuidar de tanta criança é travada com parceiros inesperados, como os funcionários da Legião da Boa Vontade (LBV). A caminho do oitavo parto, o nome foi escolhido de acordo com duas crenças que tem: a umbanda e o catolicismo. O menino se chamará José Tupã, “mistura de santo com caboclo”. Remédios, enxoval, orientações de higiene e sobre o parto são levados por abnegados da instituição cristã que está na comunidade há anos, com trabalhos relevantes para uma gente esquecida pelo poder público.
Gerente administrativa da LBV, Oderlânia Leite Galdino sabe a extensão do problema que assola a comunidade Monte Celeste. “Damos esses kits para a mãe e o bebê, mas queríamos fazer muito mais. Já tivemos audiência com a governadora e com secretários para conseguirmos um terreno onde possamos construir um centro de assistência para essas pessoas. Queremos só o terreno, pois conseguimos construir prédio com parcerias. Mas está difícil. Até agora não tivemos uma resposta concreta. Todos nós temos o sonho de conseguir esse espaço para aumentarmos a assistência da LBV”. Uma área de dois mil metros quadrados possibilitaria a implantação de cursos capacitantes, uma quadra poliesportiva e atividades sócio-educativas. “São sete anos lutando por esse terreno”.
Fraldas, banheira, roupas infantis, mantas, chupetas, calças enxutas, sabonete, mamadeira, colônia, absorvente, leite em pó, toalha, camisola são recebidos com alegria e vergonha por Valquíria. Diante da reportagem, ela sorri, ao mesmo tempo em que lamenta a impossibilidade de comprar itens indispensáveis para uma parturiente. Se a primeira gravidez veio aos 17 anos, a oitava terá o apoio mínimo para transcorrer com dignidade. “Depois desse, vou pensar em ligar as trompas. Já passei fome no Interior e não queria que meus filhos passassem o mesmo. Teve uma época que pensei até em vender droga para conseguir sustentar todo mundo”.
A casa de Valquíria é ponto de encontro de várias crianças do Monte Celeste. No ambiente degradado, com sofá, DVD e televisão na sala, uma espécie de creche é improvisada para acomodar tanta gente. “Isso aqui fica lotado”. Sem querer, ela mostra predileção por Alessandra, filha de oito anos que gosta de português e quer ser professora. “Ela é a mais estudiosa”.  A menina segura um filhote de vira-lata nascido duas semanas atrás e abre um sorriso a cada olhar mais insistente da reportagem. “Aqui aprendemos que temos que ser amigos, solidários uns com os outros. Só assim conseguimos sobreviver”.
Para Maria Janaína de Oliveira Silva, assistente social da LBV, a situação é absurda. “Jamais imaginei que encontraria uma área rural dentro de uma capital. Sinto uma impaciência com a falta de respeito com os seres humanos que vivem aqui. Existem equipamentos sociais, mas pessoas olham a realidade e fazem vista grossa”. A fluminense de Nova Iguaçu está em Natal desde 2010, ano em que chegou da Bahia. “Me transferiram para cá. Hoje estou em contato constante com eles, que me acolheram muito bem”.
Assustada com uma ordem judicial que determinou a saída das famílias do terreno, Valquíria aguarda uma nova reunião entre representantes dos assentados e da Prefeitura para determinar o formato de moradia que será oferecido no lugar dos barracos. “Eu não quero ir para apartamento, que é o que eles estão oferecendo. Tenho meus animais, minhas duas carroças e não vou me desfazer deles. Quero poder criar meus bichos. Mas primeiro quero ter meu menino, para depois pensar em casa. Sempre foi meu sonho, ter minha própria casa”. Talvez seja o passo inicial para rever a mãe, longe de sua mirada há mais de dois anos.

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