Sem previsão de alta, pacientes dependem de respiradores para sobreviver.
Situação dificulta rotatividade de hospitais e prejudica atendimentos.
Depois dos três meses de vida, Carlos Daniel, atualmente com 8 anos, nunca mais saiu do ambiente hospitalar. Desde que foi diagnosticado com distrofia muscular, o garoto está internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) pediátrica do Hospital Pediátrico Maria Alice Fernandes, na zona Norte de Natal. Carlinhos, como é chamado pela equipe médica, é uma das crianças com doença crônica que dependem de ventilação mecânica para sobreviver. Nas palavras de médicos e enfermeiros, são os chamados "moradores da UTI". Dos dez leitos da UTI pediátrica, cinco estavam ocupados por crônicos no Maria Alice Fernandes. Outros pacientes com o mesmo problema ocupam quatro dos dez leitos do Hospital Infantil Varela Santiago. Sem perspectivas de alta, as crianças ficam em vagas que poderiam ser destinadas a pacientes agudos. "Apenas metade dos leitos têm rotatividade", explica o diretor geral Wilson Cleto, que espera o remanejamento de novos profissionais para colocar em funcionamento uma nova UTI recém-construída e específica para os pacientes crônicos.
A médica plantonista Vanessa Pache da Rosa explica que as crianças são vítimas de anoxia - ausência de oxigênio no cérebro - ou distrofia muscular. "No caso de Carlinhos, ele tem uma distrofia que evolui progressivamente diminuindo a movimentação. Afeta membros e respiração, chegando a um ponto que os pacientes só sobrevivem com ventilação mecânica", conta. A pediatra lembra que além do problema dos leitos, a permanência dos pacientes crônicos na UTI traz riscos de infecção no ambiente hospitalar. De acordo com a médica, os pacientes com distrofia muscular não costumam passar da adolescência.
Natural de Bento Fernandes, município a 88 quilômetros de Natal, Carlos Daniel não fala e só move um dedo de cada mão. Ele é o quarto dos cinco filhos de Michele Gomes da Silva, 35 anos, que vendeu a casa no interior para acompanhar o filho na capital. “Consegui um emprego e vim sem saber se ia dar certo. Ficava o dia todo no hospital”, diz a mãe, que hoje visita com menos frequência o filho. Michele justifica que o dia a dia ficou mais complicado depois que o marido a deixou.
Desempregada, a mãe sustenta a família com os benefícios do INSS de Carlos Daniel e do Programa Bolsa Família, o que dá R$ 908 por mês. Mesmo sabendo da falta de perspectivas de melhora, Michele não deixa de sonhar com a saída do filho do hospital. “Gostaria que ele ficasse bom, mas depende da vontade de Deus. Se fosse pela equipe médica, isso já teria acontecido. Todos têm o maior amor por Daniel”, diz.
A doença chega a um ponto em que os pacientes só sobrevivem com respirador"
Vanessa
Pache
, pediatra
A pediatra Vanessa Pache explica que Carlinhos se comunica mexendo a barriga, pelo olhar e também com os dedos. "Ele responde a estímulos, reconhece as pessoas e se emociona. Percebe até quando chegam pacientes novos na UTI. Com esse pouco movimento ele consegue ter contato conosco", afirma a pediatra.
Enfermeira do hospital desde que a criança chegou na UTI, Maria de Fátima Martins de Araújo lembra que o "xodó da UTI" foi perdendo os movimentos gradativamente. "No início ele conseguia sorrir para nós", relata. Maria de Fátima conta que Carlinhos gosta da banda Calypso e se chateia quando desligam a televisão. Todos os anos, a equipe médica e a família comemoram o aniversário do garoto, com direito a decoração, bolo e lancheira.
Mães vão à Justiça por filhos em casa
No Hospital Infantil Varela Santiago está a pequena Débora, 2 anos, um caso diferente em relação às demais crianças com doenças crônicas. A médica plantonista Ozenir Pinheiro do Nascimento explica que a menina foi diagnosticada inicialmente com distrofia muscular, no entanto o quadro não evoluiu. Apesar de não mover as pernas e precisar de ventilação mecânica, Débora mexe os braços, sorri, faz birra e até paquera piscando os olhos.
Assim como Carlos Daniel, a menina está na UTI desde os 3 meses. A mãe Maria da Conceição da Silva, 25 anos, conta que dorme em casa dia sim, dia não, para estar ao lado da filha. “Meu desejo era que os governantes nos ouvissem para levar Débora para casa. Ela está bem, só tem esse problema do respirador”, afirma Conceição, que promete entrar na Justiça para conseguir o serviço Home Care – que garante toda a estrutura para o paciente ser atendido em casa.
Atualmente o Serviço de Atendimento Domiciliar (SAD) oferecido pela Secretaria Estadual de Saúde Pública (Sesap) não atende casos de alta complexidade, como os de pacientes que precisam de respiradores. A saída dos pais tem sido a Justiça. Foi o que fez uma mãe de Ceará-Mirim, município da Grande Natal (veja o vídeo ao lado). Érika Carla, 2 anos, está sendo tratada em casa pelo Home Care. Tudo pago pelo Governo do Estado após decisão judicial.
Conceição, mãe da menina Débora, conta que além dela, outras mães estão tentando garantir via Justiça o direito de tratar os filhos com doenças crônicas em casa.
Atender em casa é mais econômico
Francisco Eliseu da Silva, diretor da empresa que presta o serviço para a menina Érika, informa que tratar um paciente em casa pode ter um custo médio de 30% a 40% menor do que mantê-lo internado na UTI. Ele explica que um atendimento como o de Érika custa R$ 27 mil por mês, enquanto o preço para manter um paciente com as mesmas características na UTI é estimado em R$ 52 mil, quase o dobro.
A composição do preço inclui gastos com medicamentos e antibióticos usados em caso de infecção do paciente, além de alimentação, higienização, entre outros itens. Para a pediatra Ozenir Pinheiro, o ideal seria um sistema de saúde em que os pacientes fossem enviados para casa. Não só para evitar os riscos de infecção e os gastos, mas também porque o tratamento é comprovadamente mais eficiente com a presença da família.
Contudo, a pediatra faz ressalvas à desospitalização. "Aqui as crianças têm médicos 24 horas e em casa não. É preciso que os pais estejam capacitados para fazer algo em casos de urgência", explica a pediatra.
Francisco Eliseu conta que já foi procurado pelo Estado para prestar o serviço, mas não se sente seguro em relação aos pagamentos. "Não adianta prestar o serviço sem receber. Não há interesse devido ao prejuízo que gera", afirma. A questão é reforçada pelo promotor Carlos Henrique Rodrigues, da Promotoria de Saúde do Ministério Público Estadual, que não vê com bons olhos a terceirização da saúde no atual momento.
"A Sesap passa por um momento financeiro difícil e não é recomendável fazer isso em uma situação de retirada de pacientes da UTI com contratação de empresa privada. Se houver inadimplência, a empresa para? Como fica a situação da criança? A atividade privada não pode ser ser protagonista na saúde pública. O papel dela deve ser complementar", ressalta.
De acordo com o secretário estadual de Saúde, Luiz Roberto Fonseca, a própria Sesap tem evitado os contratos terceirizados para investir na infraestrutura própria. "O grande problema é que existe deficiência estrutural e de pessoal na rede antiga, que está sendo redimensionada. É uma questão de gestão", afirma o secretário, que reconhece as carências do programa domiciliar.
Falta estrutura para atenção domiciliar
Crianças como Carlos Daniel, Débora e todos os demais doentes crônicos internados nas UTIs pediátricas não podem ser atendidos pelo SAD. De acordo com a coordenadora do programa, Riudete Martins de Sousa, o serviço não possui estrutura para montar a ventilação mecânica 24 horas por dia.
Riudete de Sousa informa que o serviço será expandido até o fim do ano para atendimento neonatal, de crianças recém nascidas, mas não há previsão para desocupar leitos pediátricos. "A dependência dos pacientes direta ultrapassa a atenção domiciliar", afirma.
Criado em 2005, o Programa de Internação Domiciliar (PID) virou SAD com a publicação da Portaria Ministerial 2.527/2012. Em 2012, o serviço atendeu a 1.472 pacientes, 60% deles idosos e pessoas com deficiência, além de pacientes acometidos por patologias como diabetes e hipertensão, sequelados de Acidente Vascular Encefálico, com problemas respiratórios, e politraumatizados por acidentes.
Com a Sesap em dificuldades financeiras, a dependência do governo federal para a expansão aumenta. Cada Equipe Multiprofissional de Atenção Domiciliar (Emad) recebe aporte de R$ 34.560, enquanto as Equipes Multiprofissionais de Apoio (Emap) recebem R$ 6 mil. Hoje o estado tem dez equipes, oito em Natal e duas em Parnamirim, na região metropolitana, e projetos para outros municípios.
"O atendimento ainda engatinha e a dimensão é menor do que precisamos. A deficiência de profissionais acontece na mesma razoabilidade nas escalas de programas domiciliares", reconhece o secretário.
Falta de profissionais deixa UTI fechada
O hospital Maria Alice Fernandes até tem uma UTI pediátrica nova, com dez leitos e específica para crônicos, porém o espaço não é utilizado por falta de profissionais para trabalhar. O diretor, Wilson Cleto, aguarda o remanejamento de pediatras, técnicos de enfermagem e um fsioterapeuta para fechar as escalas.
Se fosse aberta hoje, a UTI dos crônicos faria sua inauguração com 80% dos leitos ocupados, somando cinco pacientes do próprio Maria Alice Fernandes e três do Varela Santiago. A menina Débora, que está no Varela Santiago, não poderia ser transferida, pois seu caso ainda está em investigação, como explicou a pediatra Ozenir Pinheiro.
A falta de rotatividade dos leitos complica o atendimento nos dois hospitais. "Diariamente temos pacientes aguardando vagas no hospital. Já tivemos de montar leitos improvisados. Com a nova UTI esperamos desafogar esse déficit", reforça o diretor geral.
Ciente da situação, o secretário estadual de Saúde espera resolver o problema até julho. O processo, segundo ele, será possível com o remanejamento de profissionais da própria rede pública. “Quero já neste mês colocar isso em prática. A abertura desses leitos vai nos dar uma rotatividade significativa”, informa. Fonseca calcula que a nova UTI vai triplicar a capacidade de resposta do hospital.
Déficit de leitos
A construção da nova UTI foi conseguida após uma audiência em maio do ano passado. Na ocasião, a Justiça determinou o repasse de R$ 500 mil da conta judicial da Secretaria Municipal de Saúde para o Maria Alice Fernandes. O diretor do hospital acrescenta que uma doação do Ministério do Trabalho e Emprego também foi recebida para o mesmo fim.
A decisão judicial foi anexada nos autos de uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Estadual visando a abertura de leitos de UTI no Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com o promotor Carlos Henrique Rodrigues, há um déficit de 300 leitos de UTI nos hospitais públicos e privados de todo o estado.
“O primeiro aspecto a se analisar é a criação de novos leitos. Depois existe uma dificuldade enorme no setor de recursos humanos para fechar as escalas de plantão. É necessário todo um redimensionamento de profissionais da área de saúde do estado e município para preencher”, avalia. Com o reordenamento, o promotor acredita que haverá um acréscimo importante na qualidade dos leitos.
Do G1 RN
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