A Tribuna do Norte publica, nesta edição de domingo, a íntegra de
uma carta escrita há 110 anos atrás. Foi feita por um caicoense que não a
assinou, portanto, é anônima, mas conta o horror de uma seca que abalou
e matou pessoas em Caicó no ano de 1904. Opa. Apesar de terminar em 4,
esse ano protagonizou uma das mais cruéis secas do Seridó. O documento
foi publicado no jornal A República, periódico conceituado da época.
Vejamos os principais trechos da carta (respeitando a ortografia
original) que foi publicada na secção Municípios (Caicó) de “A
República”:
Vamos agora, rompendo este silêncio, dar notícias, as mais tristes e
desoladoras, do nosso querido município, digno de melhor sorte; Estamos
em fins de Março e até esta data, não se pronunciou o inverno, o que
quer dizer, que estamos em plena secca!
As chuvas que cahiram n’neste município e seus arredores, foram de efeito nullo, nada produziram, nenhum recurso fizeram!
Na feira de 20 deste, os gêneros escasseiaram, e os que appareceram
foram vendidos por preços exorbitantes, a saber: a farinha vendeu-se por
400 rs., o litro, o milho de 440 rs., o feijão por 800 rs., arroz, não
houve. O clamor é geral! A cidade acha-se invadida por um numero
elevadíssimo de imigrantes, deste e dos municípios circunvizinhos do
Catolé do Rocha, Brejo do Cruz, Rio do Peixe, Pombal e até do Piancó,
tudo do Estado da Parahyba, que tem chegado a esta cidade em procura de
recursos. Da serra do Martins e Luiz Gomes também chegam imigrantes
diariamente.
Os nossos recursos estão esgotados. Não há dia em que a cidade não
seja invadida por uma leva de retirantes, que, esquálidos e andrajosos,
imploram a caridade pública, e para não morrerem de fome, recorrem às
raízes sylvestres, quando não encontram cachorro, gato e até couros de
rezes mortas, para devorarem. Aqui, mesmo as pessoas de recursos, estão
passando privações.
Si o nosso governo não for atendido em suas reclamações perante o
governo federal, que nos auxilie para mitigarmos a fome de nossos
patrícios, terá de desaparecer do mapa do Rio Grande do Norte, o
populoso e laborioso município do Caicó.
Agora, que acaba de chegar a essa capital, uma comissão de
engenheiros, para tratar da Estrado de ferro de Natal ao Ceará-Mirim, e
d’outras medidas para attenuar os effeitos da secca, é preciso que o
governo da União, se compenetrando d’isso, mande já e já, sem demora, um
ou dois engenheiros d’esses, para o nosso sertão, acompanhando-os logo
de recursos necessários, para conjurar a crise, estudar a planta da
estrada em demanda de nossa zona, ou o serviço de açudagem, enquanto
temos gente viva.
A estrada de ferro exclusivamente do Ceará-Mirim, para attenuar os
effeitos da seca, não nos aproveita, no sentido de melhorar as nossas
condições, afflictivas. O nosso povo, já exangue e em verdadeiro estado
de inanição, não procura o agreste, onde os espera por certo a morte.
O recurso do sertão é a indústria pastoril e agrícola. Este anno aqui
ninguém quer um garrote, dos poucos que restam, actualmente, nem de
graça.
Da agricultura nada temos de esperar. O rio Seridó deu uma enxurrada e
as vazantes nada produziram. Nas roças, nem sequer houve maxixes. Aqui
não há mais uma vacca de leite, as criancinhas, dos que têm algum
recurso, ainda estão se mantendo com a garapa de rapadura.
Contamos somente com o patriotismo dos que nos governam, como única esperança.
Tem havido aqui já diversos óbitos ocasionados pela fome! Agora mesmo
o campanário da matriz dá signal de que um anjo voou para a mansão
celestial, em consequência da fome!
O pae da creança veio a cidade pedir uma mortalha e declarou que,
além deste filho, ficaram outros a morrer! Oh! meu Deus, não sei como
descrever tamanhas scenas de miséria!
Aqui n’esta cidade, o povo só fala em retirar-se, si o governo não
nos auxiliar, porque as pessoas, que ainda vão comendo, porém, já
passando mal, e d’ando ainda alguma esmola, do pouco que lhes resta,
vêem-se já em circunstâncias tão críticas a emigrar e talvez até a pé, a
falta de cavalgadura.
Não se pode descrever as scenas, comovedoras, que presenciamos aqui diariamente.
O nosso município é populoso, tem uma população superior a quase mil
almas, este povo todo sem recursos, condenado a morrer pela fome, é uma
verdadeira calamidade! Dos municípios visinhos, como Serra Negra, por
exemplo, nos chegam as notícias mais trágicas que se pode imaginar.
O governo da União deve cumprir a promessa garantida pela
Constituição, mandando socorrer-nos, porque nenhuma calamidade pública
equala-se a uma secca!
Aqui termino para não perder o correio.
Caicó, 29 de Março de 1904.
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