A pandemia do coronavírus levou o vice-presidente Hamilton Mourão de volta ao posto de “bombeiro” de crises do Planalto. Mourão
foi o único dos generais quatro estrelas que despacham no Palácio a se
dissociar, em público, do discurso do presidente Jair Bolsonaro pelo fim
da quarentena. Desta vez, porém, a saída do vice do banco
de reserva teve o aval dos representantes mais influentes das Forças
Armadas, que condenaram o ataque a governadores e demonstraram
preocupação com os panelaços e com o impacto da ofensiva de romper com a
estratégia mundial de combate à doença.
Mourão se apresentou como bombeiro, em contraposição a um Bolsonaro
incendiário, após repercussões negativas ao pronunciamento do
presidente, na terça-feira, 24, contra o isolamento da população. Ao
chamar o novo coronavírus de “gripezinha” e “resfriadinho”, em cadeia de
rádio e TV, Bolsonaro
provocou críticas de todos os lados, foi bombardeado nas redes sociais e
levou até aliados de primeira hora, como o governador de Goiás, Ronaldo
Caiado (DEM), a romper com ele. Até ali, 46 brasileiros haviam morrido com coronavírus.
Num primeiro momento, o pronunciamento de Bolsonaro foi avaliado
pelos militares como errado na forma, mas correto ao destacar as
consequências econômicas das medidas de isolamento. Mas o discurso
sincronizado da caserna e do governo, depois que Bolsonaro enquadrou até
o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, não durou 24 horas. “A posição do nosso governo, por enquanto, é uma só: o isolamento e o distanciamento social”, afirmou Mourão, que, naquele momento, era a única voz dissonante em público.
A partir daí, militares começaram a manifestar incômodo com a tática
de confronto adotada por Bolsonaro ao desqualificar medidas anunciadas
por governadores para evitar o contágio pelo coronavírus. Àquela altura,
o número de vítimas fatais era de 56 pessoas. Até a publicação dessa reportagem, já chegava a 136, com 4.256 infectados.
Ao Estado, Mourão disse ser necessário um
“equilíbrio” entre medidas de combate ao avanço da doença e a situação
da economia. “Continuo no meu papel de vice-presidente. Atuo como
conselheiro, busco levantar linhas de ação para que decisões sejam
tomadas. No mais é uma eterna busca do equilíbrio entre salvar vidas,
impedir uma queda fervorosa do PIB e manter a parcela dos empregos
existentes”, afirmou. Sua fala, mais uma vez, é um contraponto a
Bolsonaro, que ontem foi para as ruas menosprezar a doença e defender a
volta do País à normalidade.
Diante do Palácio da Alvorada, na última quinta-feira, Bolsonaro
deixou escapar o incômodo com a independência do vice. “O Mourão tem
dado opiniões, é uma pessoa que está do meu lado ali. É o reserva de
vocês. Se eu empacotar aí, vocês vão ter que engolir o Mourão. É uma boa
pessoa, podem ter certeza”, ironizou.
Tosco. No dia seguinte, Bolsonaro voltou ao assunto.
“Com todo o respeito ao Mourão, mas ele é mais tosco do que eu. Muito
mais tosco. Não é porque é gaúcho, não. Alguns falam que eu sou um cara
muito cordial perto do Mourão”, afirmou o presidente ao apresentador
José Luiz Datena, da TV Band.
Embora em tom descontraído, a declaração de Bolsonaro teve o objetivo de reacender um velho temor de setores da política, do Judiciário e da opinião pública.
O receio ocorre porque, em um eventual afastamento do presidente, quem
assume a Presidência, pela Constituição, é o vice. Nesse caso haveria,
de fato, um governo militar, embora o atual conte com oito dos 22
ministérios nas mãos de oriundos das Forças Armadas. O número não
engloba a centena de postos ocupados por militares em segundo e terceiro
escalões.
Apesar das desavenças do passado, o tom adotado agora por Bolsonaro
em relação a Mourão foi absorvido por suas redes sociais como uma
parceria do tipo “morde e assopra”. Ao contrário de outras vezes, os
principais influenciadores digitais do bolsonarismo, incluindo aí os
filhos do presidente, estão quietos, por enquanto, sobre os movimentos
do vice.
A primeira missão de “bombeiro” do vice, nesta temporada de crises,
foi para desembaraçar o rolo diplomático entre o deputado Eduardo
Bolsonaro (PSL-SP) e o embaixador chinês Yang Wanming. No último dia 18,
o filho “03” do presidente acusou a China, por meio do Twitter, de ter
causado a propagação do coronavírus. O diplomata rebateu.
Mourão assumiu a dianteira para dizer que Eduardo não falava pelo
governo, apesar do parentesco. “Se o sobrenome dele fosse Eduardo
Bananinha, não era problema nenhum. É só por causa do sobrenome. Não é a
opinião do governo”.
Durante a áspera discussão entre Bolsonaro e o governador de São
Paulo, João Doria (PSDB), na quarta-feira, Mourão também estava presente
e fez sinal de reprovação com a cabeça, como se não concordasse com o
presidente. Afirmou, depois, que todos se enganaram na “interpretação
dos sinais corporais”. Mas não escondeu o “constrangimento” ao afirmar
que divergências políticas devem agora ser evitadas.
Queimadas. Na prática, Mourão ressurge quando há
confluência de confusões. Em abril do ano passado, por exemplo, ele
provocou a fúria de Bolsonaro e de seus filhos por adotar estilo mais
ameno com a oposição e a imprensa. O vereador Carlos Bolsonaro (PSC) e o guru da família, Olavo de Carvalho, lideraram, então, um linchamento virtual.
O vice recuou. Só saiu da “geladeira” nove meses depois, na crise envolvendo as queimadas na Amazônia, quando Bolsonaro o escalou para fazer o contraponto ao discurso pró-desmatamento do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
Mourão teve, ainda, a missão de pôr panos quentes na disputa velada
de Bolsonaro com o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro,
quando o presidente, enciumado com a popularidade do ex-juiz da Lava
Jato, chegou a cogitar a divisão da pasta comandada por ele em duas.
Além de ajudar na construção de ações para enfrentar as queimadas,
que recomeçam no meio do ano, Mourão direcionará seu trabalho para o
período compreendido entre o fim de abril e junho, quando dificuldades
de logística poderão atingir o ápice.
ESTADÃO CONTEÚDO
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