A vida é assim. A desgraça de uns muitas vezes se transforma na fortuna de outros. No sol de quase dezembro, e após seis meses de estiagem, vaqueiros, sertanejos, criadores de gado, fazendeiros e outros ilustres personagens dessa história secular disputam o gado com os urubus. Não só o gado: também bodes e cabras. A plantação já foi perdida. O tempo não foi generoso e a caatinga reassumiu sua faceta mais estereotipada: terra rachada, carcaças de animais espalhadas pelos caminhos. Por essa época do ano, entre o sertanejo e os urubus, surge uma outra figura histórica para a caatinga. É o xique-xique, o fiel dessa balança.
Alex RegisCena comum à época de estiagens no sertão nordestino, a queima de xique-xique é o recurso ao qual agricultores, como Paulo Assunção, em Santana do Matos, dispõem para escapar o magro rebanho
O xique-xique é antes de tudo um forte. Espinhoso, resistente e acostumado à aridez, o sodoro, como é mais comumente chamado por essas bandas, é uma das poucas plantas a conseguir sobreviver à seca. Como não choveu, não há pasto. Mas o gado obviamente precisa comer. É nesse descompasso que o xique-xique se insere e ganha ares de personagem principal. Tentando evitar ao máximo enriquecer ainda mais os urubus, o sertanejo começa a queimar o sodoro para substituir o pasto e a ração, já escassas após o sexto mês de seca. Alguns mais abastados conseguem misturar com farelo ou pasta. Outros dependem exclusivamente do xique-xique.Passa das 10h em Santana do Matos. O azul do céu limpíssimo, apesar de bonito, aterroriza. É sinal de calor. Aboletados em uma pequeno almoxarifado, três homens, sendo um mais moço e dois mais velhos, assistem ao espetáculo do sodoro. O xique-xique foi guardado em grandes montes à espera da forrageira. A massa verde atravessa a máquina para se transformar numa pasta aquosa e sem cheiro. A pasta é recolhida do chão e vai parar nos pastos, sozinha ou acompanhada. Caso haja ração para a mistura, a vida do sertanejo fica um pouco mais leve. Só é necessário preparar a “iguaria” uma vez por dia. Sem ração, a mistura fica fraca. E o trabalho aumenta. “Eu preciso passar o dia quase todo queimando o sodoro, porque ele não tem força para manter o gado. Então, o gado precisa passar o dia inteiro comendo ou então fica fraco e pode morrer”, diz José Silveira Braga Filho, de 29 anos, acrescentando que um saco de ração custa cerca de R$ 50. “Com o passar do tempo, a seca vai deixando a ração mais cara. Quanto mais difícil o pasto, mais cara a ração”, complementa José Silveira Braga, o pai, que tem 69 anos e já queimou muito sodoro na vida.
A família Silveira Braga tem 20 cabeças de gado, sendo 10 bezerros, o que torna o ofício de queimar xique-xique penoso, mas não impossível. “Já passei 14 meses sustentando o gado apenas no xique-xique”, diz o Silveira Braga mais velho. Filho e pai se revezam em frente à forrageira e conseguem alimentar o gado apenas com a planta. Nos arredores do sítio Quixaba, em Santana do Matos, há produtores com mais de 100 animais. Dessa maneira, é impossível alimentar todos apenas com a queima do sodoro. E os animais vão morrendo.
Na Fazenda Serra do Gado, mais de 20 animais morreram. Os arredores da casa principal, onde José Carlos Soares toma de conta da pecuária, se transformaram nos últimos meses num cemitério de animais. Há pouco mais de cem metros do curral principal estão sete cadáveres de vacas , alguns já reduzidos a ossos, outros ainda motivo de festa para os urubus. Os proprietários da fazenda tiveram de recorrer a uma medida extrema. Contrataram caminhões e levaram a maior parte do gado para outra terra, na Paraíba. Muitas vacas não tiveram força para subir no caminhão. Essas vão morrendo com o passar do tempo.
Um detalhe é indispensável nesse contexto. Falta pelo menos mais quatro meses sem chuvas significativas no sertão potiguar. Esse prognóstico é otimista. Parte do pressuposto que haverá um bom inverno em 2011. Nem todos os agricultores e criadores de gado pensam dessa forma. “Se o próximo ano for do mesmo jeito, vou perder todo o meu rebanho”, diz o Silveira Braga mais novo.
Alimento pouco nutritivo para o gado
Enquanto a chuva não chega, há muito xique-xique para cortar e levar ao fogo. A planta vai assumindo um papel cada vez mais importante ao ponto em que o pasto vai rareando por aquelas paragens. A medida emergencial tem os seus contras: é um produto pouco nutritivo para as rezes, o que causa uma diminuição na produção de leite, além de, com o enfraquecimento do gado, poder até matar; e ainda por cima possui um processo bastante penoso para o trabalhador rural. Tanto que, na maioria dos casos, não há como terceirizar o serviço, a não ser que o proprietário esteja disposto a pagar entre R$ 30 e R$ 50 a diária do trabalhador. A maioria dos criadores não tem como sustentar sequer um mês a esse preço.
Paulo Xavier prepara todos os dias xique-xique para suas 15 cabeças de gado. É preferível começar o trabalho à tardinha, quando o sol castiga menos e o calor por consequência é menor. Mas nem sempre acontece assim. Há quem prepare a ração improvisada durante o dia inteiro, como também há quem escolha momentos estratégicos durante o dia. Por ocasião da visita da reportagem a Santana do Matos, Paulo Xavier preferiu iniciar o processo às 16h.
O primeiro passo é cortar o xique-xique em grandes pedaços, com uma foice ou uma roçadeira. Como se sabe, trata-se de uma planta cheia de espinhos, o que torna impossível o manuseio com as mãos. O sertanejo improvisa um gancho, através do qual consegue manusear a planta. A queima e si varia. O objetivo desse passo é retirar os espinhos da planta, os quais impossibilitam a ingestão do sodoro pelo gado. Métodos mais “modernos” usam um maçarico, mas desde sempre o processo tem seguimento com as “coivaras”, grandes fogueiras onde o sertanejo “assa” o xique-xique até que ele fique liso.
As duas maneiras têm diferenças importantes para quem conduz o processo. O grande problema é o calor. Ora, o sertão já é suficientemente quente e alguns minutos diante de uma fogueira é o bastante para produzir uma insuportável sensação de calor. Com o maçarico, o sertanejo tem a escolha de parar o processo quando lhe der vontade, ou quando a temperatura atingir níveis difíceis de agüentar. Já nas “coivaras” isso não é possível. É preciso aproveitar a lenha, na maioria das vezes galhos secos encontrados ao redor.
A demonstração apresentada por Paulo Xavier foi à moda antiga. Os sodoros estavam amontados no chão e o gancho era encarregado de levá-los até a fogueira, onde cada planta demora poucos minutos. Quando o xique-xique entra em contato com o fogo, as labaredas assumem um tom esverdeado, aos poucos substituído pelo amarelo e pelo laranja. Ao passo em que o monte de sodoros cortados vai dando lugar aos galhos pintados de preto pelo fogo, é hora de carregar a carroça e levar o apurado do dia para o curral.
Contudo, o trabalho não terminou por aí. Os galhos queimados precisam passar pela forrageira para chegar à forma comestível para as rezes. Em dias normais, dizem os sertanejos, o gado não comeria aquela mistura insossa. Mas até mesmo os animais sentem que não há escolha. Ou comem sodoro ou são admitidos no banquete macabro dos urubus.
Animais são os primeiros a serem atingidos pela seca
A convivência com a seca é um tema recorrente no Brasil há muito tempo. Fala-se de tudo: caminhões-pipa, cisternas, transposição de rios, construção de açudes, etc. A lista de supostas panacéias é infindável, porém insuficiente. O que se percebe andando pelo sertão do Rio Grande do Norte é a dificuldade dos sertanejos em lidar com o temperamento da natureza. Os animais são os primeiros atingidos, mas não os únicos. Em algumas localidades, é difícil conseguir água até mesmo para o consumo humano.
Quando se pensa nesse assunto, melhor relativizar o estereótipo do sertanejo miserável e faminto. Miséria existe, mas não é tão fácil encontrar sertanejos comendo palma e preás como há tanto é alardeado pela imprensa nacional. Por mais pobre que seja a comunidade, sempre existem aposentados e beneficiários do bolsa-família para sustentar a casa. O que acontece é o sucessivo empobrecimento dessas famílias e a dependência sem fim desses programas de assistência.
No assentamento Jucá, município de Pedro Avelino(Região central), a dificuldade é manter a água para a própria comunidade, formada por 10 casas. Tudo ali é fruto de financiamento governamental. A começar pelas casas, a aquisição do terreno, os animais para criação e as cisternas consideradas a solução dos problemas. Como não choveu, as cisternas ficaram vazias. É normal que uma cisterna de 18 mil litros seja suficiente para manter o consumo de uma família durante um ano. Contudo, naquelas paragens é tamanha a aridez que as pessoas dividem a água com o gado.
Nesse caso, a única solução é comprar água por carrada. Custa R$ 80 cada caminhão que vai para o Jucá. Somente este mês foram sete, o que aperta o orçamento das famílias. Ora, a principal atividade é a criação de caprinos – bodes e cabras – e esta mesmo não vai muito bem. O rebanho praticamente foi reduzido pela metade. O pasto está repleto de carcaças ao ponto de, em minutos, os criadores conseguirem juntar cinco cabras mortas para uma fotografia.
Francisco Carlos da Silva, tesoureiro da associação que gere o assentamento, conta que a única alternativa é se virar com bicos e o dinheiro do bolsa-família. No assentamento, não há aposentados. Para os próximos anos, a construção de duas grandes cisternas é apontada como uma possível solução. O açude que há por ali fica longe e não há tubulação. A proliferação de cisternas faz parte de um programa do Governo Federal. São mais de 300 mil em todo o país. Em municípios pequenos, como Pedro Avelino, Santana do Matos, Lajes, entre outros da região central, há entre 300 e 500 cisternas por cidade. É pouco quando se compara ao universo total de agricultores e criadores de gado. Outro ponto importante para a vida no sertão – os carros-pipa – sofrem com a politização. Quando o programa executado pelo Exército não chega a todos, a água vira moeda política. Um capital utilizado para conseguir votos nas regiões mais distantes.
Da TN
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