Uma missa de domingo em uma capela,
ameaças em campo aberto às margens de um rio e 150 pessoas brutalmente
assassinadas. Dois massacres registrados no Rio Grande do Norte e
apontados como símbolos da intolerância religiosa de holandeses que
dominavam o Nordeste brasileiro em 1645 renderam ao país, 372 anos
depois, 30 novos santos - "os primeiros santos mártires do Brasil".
Os
chamados "mártires de Cunhaú e Uruaçú" - nomes de duas localidades da
época que hoje correspondem aos muncípios potiguares de Canguaretama e
São Gonçalo do Amarante - foram beatificados no ano 2000 pelo Papa João
Paulo II e canonizados neste domingo pelo Papa Francisco.
"Pela
exaltação da fé católica e incremento da fé cristã, declaramos e
definimos santos os padres André de Soveral e Ambrósio Francisco Ferro,
Mateus Moreira e seus 27 companheiros leigos", disse o papa.
Na
mesma cerimônia, ele canonizou Cristobal, Antonio e Juan, mortos em 1527
e 1529, e considerados os Protomártires do México e de todo o
continente americano; o sacerdote espanhol Faustino Míguez, fundador do
Instituto Calasanzio, Filhas da Divina da Divina Pastora, e o Frade
Menor Capuchinho italiano Angelo d'Acri.
Os 30 novos santos do
Brasil são os únicos mortos identificados em dois massacres que deixaram
um saldo de aproximadamente 150 vítimas. Por esse motivo, somente eles
foram reconhecidos na cerimônia.
O caso é considerado emblemático, entre outros motivos, porque os
massacrados teriam "dado a vida, derramado o sangue, na vivência de sua
fé", segundo a Igreja.
Em Cunhaú, 70 teriam sido assassinados em
16 de julho de 1645. O episódio é apontado como retaliação holandesa aos
que seguiam a fé católica e se recusavam a migrar para o movimento
religioso protestante que difundiam, o calvinismo.
O livro "Beato
Mateus Moreira e seus companheiros mártires", escrito pelo Monsenhor
Francisco de Assis Pereira a partir de pesquisas históricas e dados que
embasaram a beatificação, afirma que os holandeses contaram com a ajuda
de indígenas para invadir uma capela da região, fechar as portas e matar
quem estivesse dentro, em uma manhã de domingo.
Quase três meses
depois desse episódio, em 3 de outubro, outras 80 pessoas também
viraram alvos em outro cenário: às margens do rio Uruaçú, foram despidas
e assassinadas por não terem se convertido ao protestantismo.
Nem crianças foram poupadas do ataque. Uma delas, com dois meses de vida, foi uma das vítimas, junto com uma irmã e o pai.
Também parte desse segundo grupo, o camponês Mateus Moreira acabou
virando símbolo do martírio porque, no momento de sua morte, teria
bradado: "Louvado seja o Santíssimo Sacramento". A louvação seria uma
prova incontestável de sua fé, na visão católica. Ele foi morto ao ter o
coração arrancado pelas costas.
A presença da igreja católica no
Nordeste já era considerada "marcante" nessa época, como descreve o
Monsenhor Pereira, postulador da causa da beatificação dos mártires, no
livro. "Havia padres seculares (padres pertencentes a dioceses),
numerosos conventos de franciscanos, carmelitas, jesuítas e beneditinos.
Eram mais de 40 mil católicos", escreve ele.
Os holandeses
aportaram na região em 1630. Eles chegaram nesse período a Pernambuco e
assumiram o comando político e militar da área - estendendo o domínio
posteriormente a outras capitanias, inclusive à do Rio Grande, como era
chamado o Rio Grande do Norte.
Os colonizadores teriam perseguido
e assassinado adeptos da religião católica que não aceitaram virar
calvinistas. Na mesma época em que, por meio da Inquisição, a Igreja
Católica ainda perseguia, julgava e punia acusados de heresia.
Adultos, jovens e crianças: quem são os mártires canonizados
A
lista de novos santos inclui um total de 25 homens, entre eles dois
padres, e cinco mulheres. Eram 16 adultos, 12 jovens e duas crianças - a
mais nova, o bebê de dois meses de idade.
"A identificação dos
canonizados não se dá tanto pelos nomes, mas também por identificação de
parentesco e de amizade (das vítimas)", ressalta o padre Julio Cesar
Souza Cavalcanti, responsável por encaminhar a canonização dos mártires
na Arquidiocese de Natal.
A missa solene em que o papa Francisco
proclamou a canonização, na Basílica de São Pedro, em Roma, aconteceu às
10h deste domingo, no horário local (5h no Brasil), com a praça
completamente lotada.
A professora aposentada Sônia Nogueira, de 60 anos, ficou em Natal, a
mais de sete mil quilômetros de distância da cerimônia, mas em vigília e
"com o coração cheio de gratidão pelos mártires".
Ela diz que,
por intermédio deles, pediu "a graça da cura e da libertação" para o
marido, José Robério, que em 2002 começou a enfrentar as consequências
de um câncer no cérebro.
Fortes dores de cabeça levaram o militar aposentado, hoje com 68 anos, ao diagnóstico.
O
caminho trilhado a partir desse ponto foi marcado por "apreensão", mas
também pelo que Sônia resume com letras maiúsculas em um texto: "MILAGRE
DA SOBREVIDA!"
A frase foi escrita por ela em um relatório que
enviou à Igreja Católica no Rio Grande do Norte, em 2016, para contar a
história do marido em meio a exames, tratamentos de saúde, cirurgias e
momentos de "fé".
Rezar foi a estratégia fundamental, segundo
Nogueira, para que Robério resistisse à doença, que raramente
possibilita sobrevida de mais de três anos aos pacientes após
diagnóstico. No laudo médico que a professora apresentou para embasar
cientificamente o que considera um milagre, o neurocirurgião que
acompanhou o caso de Robério o coloca no rol de "exceções da medicina",
porque ele sobreviveu.
"Já se vão 15 anos e 5 meses desde que
soubemos do tumor", diz Sônia, em entrevista à BBC Brasil. Ela não tem
dúvidas: "Foi um milagre. A medicina foi só um complemento".
Comprovação de milagres não foi exigida no processo
Robério
e sua mulher estão entre os mais de cinco mil fiéis que já relataram à
Arquidiocese de Natal "graças alcançadas" por meio dos "novos santos" do
Brasil.
Não foram necessários, porém, milagres para fundamentar a canonização.
"O papa Francisco, quando decidiu pela canonização com a dispensa do
milagre, colocou como um ponto básico (para a aprovação) a antiguidade
do martírio e a perpetuidade da devoção do povo aos mártires", explica o
padre Julio.
Por meio do chamado processo de equipolência, o papa
reconhece a santidade considerando três requisitos: a prova da
constância e da antiguidade do culto aos candidatos a santos, o atestado
histórico incontestável de sua fé católica e virtudes e a amplitude de
sua devoção.
O mesmo processo, em que milagres foram dispensados,
foi adotado para a canonização de São José de Anchieta, outro santo do
Brasil.
Para Nogueira e Robério, no Rio Grande do Norte, o milagre que os
mártires teriam realizado é, porém, inquestionável. "Robério foi bem
aventurado no processo, por intercessão deles", justifica a aposentada.
"Como um paciente pode chegar a (sobreviver) 15 anos tomando uma
medicação que segura outros por no máximo três?".
Com
dificuldades para falar e andar sem apoio, após a segunda e última
cirurgia que fez, o marido faz coro: "Estava muito doente e os mártires
me levantaram".
"Quem não vai ficar bom tendo um santo dentro de
casa?", ele questiona, referindo- se ao fato de os novos santos terem
origem no estado em que mora.
A canonização deste domingo eleva
para 36 a quantidade de santos considerados nacionais. Até agora, só um
deles, Santo Antônio de Sant'Ana Galvão, mais conhecido como Frei Galvão
- santificado em 11 de maio de 2007 - é, porém, brasileiro de
nascimento. Os outros cinco já oficializados, São Roque Gonzales, Santo
Afonso Rodrigues, São João de Castilho, Santa Paulina do Coração
Agonizante de Jesus e São José de Anchieta, são estrangeiros, mas
desenvolveram missões no país. Eles são reconhecidos por milagres.
Para
o padre Júlio, "a grande mensagem com a canonização é de reconhecer que
mesmo pensando diferente, seja em qualquer campo, devemos sempre
respeitar o outro e jamais destruir alguém, de nenhum modo".
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