segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Lei facilita o acesso ao tratamento com cannabis no RN

Gabriela Lima busca legalizar uso de óleo artesanal. No RN, entre 5 e 10 mil famílias fazem uso

 

O uso medicinal da cannabis para tratamentos de saúde, autorizado pelo Governo do Estado no mês passado, deve garantir suporte a pacientes no Rio Grande do Norte que buscam terapias à base da substância ou de derivados dela, além de incentivar pesquisas sobre o tema. A Lei Nº 11.055, publicada no Diário Oficial (DOE), também  deve estimular uma indústria da cannabis no RN e promover a a divulgação de informações para a população e profissionais de saúde. A avaliação é do neurofisiologista Claudio Queiroz.No Estado, segundo estimativas da Associação Reconstruir Cannabis Medicinal, de Natal, algo em torno de 5 mil a 10 mil famílias  fazem uso de medicamentos à base da substância  para tratar epilepsia, autismo, dor crônica, fibromialgia,  esclerose múltipla, Parkinson, Alzheimer, câncer, ansiedade, bruxismo, ELA, e HIV.

“Eu entendo que a Lei é bastante positiva, porque ela permite o direito à saúde de pessoas que têm se beneficiado do uso medicinal da cannabis. Isso é um primeiro avanço. Além disso, a lei tem outros capítulos que eu considero muito importantes: um deles é o que incentiva a criação de uma indústria e a realização de pesquisas sobre cannabis no Estado”, pontua Queiroz, que é professor do Instituto do Cérebro (ICe), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

O neurofisiologista pesquisa, há cerca de cinco anos, o uso da cannabis para problemas associados à epilepsia. As primeiras descobertas, ainda genéricas, têm sido acompanhadas em animais. “Nosso laboratório está interessado em entender o potencial anticrise de diferentes compostos de extratos obtidos a partir da planta e de como isso modula a excitabilidade neuronal, ou seja, a atividade elétrica do sistema nervoso de animais”, explica ele ao esclarecer que não trabalha com tratamentos.Os estudos, que são básicos,   estão voltados a entender mecanismos e demonstrar fenômenos a partir da utilização de compostos da planta. Além da aplicação para a epilepsia, no  ICe também são realizadas pesquisas  direcionadas ao estudo de zumbidos no ouvido, para o entendimento de como a cannabis modula a resposta auditiva ao estímulo sonoro.

A realização de pesquisas, no entanto, ainda enfrenta dificuldades, em razão de entraves legais, de acordo com Claudio Queiroz. “Considerando que a cannabis é uma substância proscrita, obter citocanabinoides puros e isolados é difícil, do ponto de vista burocrático”, afirma o professor.

Incentivos

Se a realização de pesquisas com cannabis enfrenta dificuldades por causa de fatores legais, o avanço desses mesmos estudos só têm a ganhar com a criação da Lei  11.055, conforme análise do professor Claudio Queiroz, do Instituto do Cérebro (ICe). “Um dos itens [da lei] faz menção à promoção da atividade científica. Vários pesquisas do ICe sobre o tema,  na minha compreensão, não estão resolvidas no momento.  A gente não sabe exatamente qual o mecanismo e a melhor combinação dos extratos para o tratamento das epilepsias”, relata.

“Não sabemos se esses extratos desenvolvem alguma tolerância, por exemplo e qual seria essa taxa de tolerância. Tem muitas perguntas a serem resolvidas e quando o Governo estadual coloca o incentivo à pesquisa sobre cannabis numa lei, eu avalio isso como algo extremamente positivo”, discorre Queiroz. A expectativa agora, segundo ele, é que esses incentivos se materializem na  Fundação de Amparo à Pesquisa  do RN (Fapern), com a realização de editais e chamadas para pesquisadores com trabalhos associadas à cannabis. Outro ponto destacado por ele, no âmbito da lei, é a difusão de informações sobre o tema.

Uso terapêutico

Para Felipe Farias, presidente da Associação Reconstruir Cannabis Medicinal, a lei é extremamente positiva justamente por reconhecer o uso terapêutico da cannabis e de seus benefícios. “A medida promove o acesso aos pacientes a usar a cannabis como tratamento, assim como o acesso à pesquisa e, principalmente à educação”, frisa ele. A associação presidida por Farias foi criada em 2017.

Felipe conta que tudo se deu por causa de demandas que chegaram até ele, após notícias de que um paciente em Natal teria autorização judicial para o cultivo da planta.  “Começamos um processo de cultivo e produção de remédio fitoterápico  para os pacientes. Todos eles tinham receitas médicas e laudos atestando problemas de saúde. Nós fizemos  convênios com a UFRN para que fossem feitas análises dos remédios e   entramos na Justiça para conseguir um teor legal [para o cultivo]”, descreve Farias.À época da questão judicial, segundo o presidente da Associação, cerca de 200 pacientes estavam cadastrados junto à ONG para fazer uso de medicamentos à base de cannabis. Após  um ano de audiências, no final de 2018, o juiz negou a ação. “Não houve embasamento científico, mas apenas questões ideológicas”, alega Farias sobre o fato de a ação ter sido negada. Desde então, a Reconstruir Cannabis atua no sentido de apoiar pacientes a importar medicamentos produzidos à base da substância, mas está proibida de cultivar a planta.

Quem busca judicializar  a importação via plano de saúde também recebe assessoria da ONG. Do mesmo modo, pacientes que procuram meios legais para cultivar a cannabis, são apoiados pela equipe da associação, que conta com 25 voluntários. No RN, segundo Felipe Farias,  40 famílias plantam maconha legalmente em casa. Elas recebem suporte em relação ao cultivo para produzir o remédio, além de suporte médico.
Família busca legalizar uso de cannabis para criança

A professora de dança Gabriella Lima busca legalizar há quatro anos o uso de óleo artesanal à base de cannabis para o filho, o pequeno Cauã, de 6 anos. O menino teve anóxia neonatal (falta de oxigênio no cérebro), ocasionada, segundo a mãe, por questões referentes à demora no parto. “Cauã nasceu praticamente morto. Ele não chorou, precisou de reanimação e foi direto para um respirador”, detalha a professora.

O menino sofreu convulsões logo nas primeiras horas de vida e passou quatro meses internado, sempre alternando, nesse período, entre uma UTI e um leito de médio risco. “Nós percebemos que Cauã era uma criança extremamente estressada. Ele não parava de chorar. Durante um dos meses em que ficou direto na UTI, passou 20 dias intubado, então, a gente não sabia muito o que estava acontecendo. Quando acordou, nós percebemos  que ele não conseguia passar 10 minutos sem chorar”, conta Gabriella.

Por causa disso, vieram as investigações. Já no primeiro exame de encefalograma, uma constatação: Cauã sofrera nove convulsões em meia hora. O choro era provocado pelas crises. Entre remédios e UTI, um novo exame apontou que a lesão no cérebro do bebê era muito grande. Portanto, Cauã tinha uma epilepsia grave, que não era controlada nem com os muitos medicamentos que recebia.

“As medicações deixaram meu filho muito apagado. Ele era uma criança que só dormia e nunca sorria. Eu perguntava o tempo todo se conseguiria vê-lo sorrindo um dia”, conta Gabriella. Mesmo ao deixar o hospital, o menino retornava à UTI todos os meses, por causa das crises, que estavam num estágio de mal convulsivo (diversas crises seguidas ou ininterruptas). Aos dois anos, Cauã passou 72 horas seguidas em convulsão. Estava dopado de remédios, conforme relatos da mãe.“Aquilo era assustador. Eu fiquei desesperada. A cama dele tremia”, diz Gabriella. Ela conta que, ao ver notícias na TV sobre o uso medicinal da cannabis, foi em busca de informações na Paraíba, onde existe uma ONG que atua de forma legalizada no cultivo da maconha. Através da associação paraibana, ela entrou em contato com pacientes do RN que faziam uso da substância. Uma pessoa, que produzia o óleo para o próprio pai, se ofereceu para ajudar Gabriella.

Ela procurou orientação de um neurocientista, que a aconselhou a tentar o uso. A orientação do profissional de saúde foi que Gabriella procedesse de acordo com indicações do homem que procurou lhe ajudar. A professora conta que foram aplicadas pequenas gotas embaixo da língua do menino. Em 24 horas, segundo Gabriella, a criança acordou sem convulsões.

Cauã foi submetido a um novo eletroencefalograma e não foi detectada nenhuma crise. O uso do remédio continuou e, na mesma medida que as aplicações aconteciam, a criança foi “desmamando de outros medicamentos”, segundo Gabriella. “Ele chegou a tomar quatro convulsivos ao mesmo tempo, mas que não controlavam as crises”, conta.Cauã ainda enfrenta muitos desafios, especialmente os ligados à questão motora, segundo Gabriella. “Ele não senta sozinho, não consegue equilibrar a cabeça, não fica de pé, não fala, mas consegue demonstrar reações e, graças a Deus, eu já vejo o sorriso dele. Cauã é outra criança”. Hoje, o menino não usa outros  remédios além do óleo.

Atualmente, Gabriella tenta, junto com a Associação Reconstruir, a legalização do uso do medicamento à base de cannabis na Justiça. “O pedido é negado, a gente recorre, mas a situação até agora não se resolveu”, afirma Gabriella.

Com a nova lei, a professora espera que o acesso a tratamentos seja facilitado para todos os que necessitam fazer uso medicinal da cannabis. “A lei é um grande passo para a nossa luta e acredito que muita gente vai conseguir acesso aos tratamentos com muito mais facilidade. A gente não sabe muito bem como isso vai acontecer na prática, mas imagino que vai ser mais fácil. No que diz respeito às pesquisas, considero que a medida vai ajudar a quebrar tabus da classe médica. Mas, será uma longa trajetória”, prevê.


Tribuna do Norte

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